O futuro da TV no Brasil

º 141 – Abril/Maio 2014

Por Francisco Machado Filho* em Las Vegas

Reportagem

O que podemos aprender com o mercado broadcasting dos Estados Unidos. Estaremos a caminho de uma mudança de paradigma na TV Aberta?

Muitos conhecem a história do início da televisão no Brasil. O modelo que estruturou nossa indústria televisiva foi importado dos Estados Unidos e adaptado à realidade brasileira. Agora, quando a internet e os dispositivos móveis estão revolucionando o modo como as pessoas consomem os produtos televisivos, será possível que o modelo americano possa nos mostrar um caminho mais seguro a trilhar nessa fase transitória até que o futuro nos alcance? Sim, é possível. Foi o que se pode constatar na edição de 2014 do congresso da NAB (National Association of Broadcasters) em Las Vegas, Estados Unidos.
Em uma comparação simples, o mercado americano de televisão atualmente está enfrentando problemas que aqui no Brasil ainda estão se materializando e se mostram em um futuro não muito distante, mas mesmo assim, ainda no futuro. A internet de alta velocidade e os dispositivos móveis estão se popularizando no Brasil, mas ainda estão distantes dos números apresentados nos Estados Unidos e Grã-Bretanha e a monetização deste segmento por aqui é apenas uma pequena fração do que movimenta o mercado americano.
Porém, esta defasagem concede um tempo precioso ao mercado brasileiro de televisão para traçar estratégias de adaptação a este novo contexto.
Basicamente, o modelo americano de televisão se difere do brasileiro em três aspectos importantes: as emissoras americanas produzem apenas conteúdo jornalístico; há uma forte participação das emissoras locais na indústria televisiva e a atual e quase inexpressiva penetração do sistema aberto nos domicílios norte -americanos, restrito a 10% da população.
Estes três pontos são os que determinam as estratégias e o foco de cada mercado. No Brasil, as emissoras produzem quase que a totalidade do conteúdo exibido; a TV aberta ainda é de longe o veículo de maior penetração nos domicílios com índice de 98,6% e as emissoras locais e produtos independentes possuem pouca representatividade na grade total das emissoras. (ver quadro)

Características dos mercados americano e brasileiros de televisão aberta

EUA Brasil
Penetração
do meio
Consequência direta: A baixa penetração da TV gratuita e
a indefinição da FCC sobre o futuro do sistema broadcast
norte-americano tem gerado insegurança na indústria. A
quem defenda o fim do sistema de transmissão pelo ar.
Consequência direta: os altos índices de penetração da TV aberta garantem a força política e econômica necessária para que o sistema aberto seja mantido no ar. Nunca se cogitou no Brasil o fim do sistema aberto de televisão.
Ação: Previsto para ser lançado em 2016 o sistema ATSC 3.0 será o novo padrão digital de transmissão e possibilitará entre outras funções, a portabilidade, a interatividade, TV Hibrida e transmissão em 4K e 8K. Ação: esta segurança permite as emissoras planejarem investimentos e estratégias que absorvam os impactos causados na formação de novos cenários como o uso da segunda tela, TV Híbrida e sistema de transmissão em 4K.
Produção de
conteúdo
Consequência direta: impedida por lei de produzir conteúdo, na década de 90 as emissoras americanas se fundiram com a indústria cinematográfica ou grandes conglomerados visando aumentar a qualidade de sua programação e atrair público e anunciantes. Agora, a internet, os serviços móveis e de OTT desafiam novamente o modelo atual. Consequência direta: a concentração na produção de conteúdo eleva o custo de produção o que no futuro pode gerar queda na qualidade dos programas. Com a regulamentação da Lei 12.485/2011 o mercado independente de produção tem crescido e se profissionalizado. Algumas emissoras já noticiaram que estão terceirizando a produção de novelas e entretenimento.
Ação: para se tornar novamente relevante as emissoras tem investido em conteúdo em segunda tela, TV Social, programas ao vivo e programação local. Além disso, equipamentos de captação e pós-produção a custos baixos incrementam a produção de conteúdo independente. Ação: no futuro as emissoras poderão aumentar a parcela de produtos independentes na grade diminuindo custos. Os conteúdos interativos, em segunda tela ou de OTT ainda não representam um nicho expressivo no país, com isto, estas ações não visam tornar a TV aberta novamente relevante, mas visam reter a audiência e fomentar novas oportunidades de negócio.
Localismo Consequência direta: a TV local sempre desempenhou um papel importante dentro da indústria e hoje se torna o argumento principal da NAB da relevância do sistema broadcast na prestação de serviços públicos e de segurança para os cidadãos americanos. Consequência direta: historicamente as emissoras privilegiaram as transmissões em rede, o que forçou grande parte das emissoras locais a se dedicarem ao telejornalismo e a uma forte dependência comercial das redes.
Ação: a NAB vem reforçando o caráter de serviço público do sistema broadcast e da TV local como único meio capaz de atender a população em situações de desastres visando sensibilizar a FCC da importância, não apenas comercial do sistema broadcast, mas também da necessidade de se manter este sistema funcionando e viável economicamente. Ação: o localismo é uma das possibilidades ainda a ser explorada na TV aberta.

Mas, mesmo com essas diferenças é possível afirmar que em um futuro próximo, os dois mercados serão ainda mais similares. Se não em volume de investimentos publicitários, pelo menos nos hábitos dos espectadores e na estrutura do sistema aberto de televisão.
Esta similaridade se dará no sistema de transmissão em Ultra Alta Definição (UHDTV), ou seja, 4K e 8K, na interatividade via TV Híbrida ou pela Segunda Tela baseada em aplicativos na internet, em conteúdo de alta qualidade técnica e estética, mas de baixo custo de produção, na entrega de conteúdo on-demand, na cobertura de grandes eventos ao vivo e na acessibilidade.

A Segunda Tela é inevitável
Engana-se quem pensa que o fenômeno da Segunda Tela surgiu recentemente com os tabletes e smartphones.
O hábito de se assistir a um programa televisivo sempre foi acompanhado de outras tarefas ou distrações.
Em 1961, Newton Minow, então presidente da FCC (Federal Communications Commission) proferiu um discurso intitulado: A televisão e o interesse público, e afirmou: “convido-os a sentar diante de seus televisores quando sua emissora entrar no ar e ali permanecer sem um livro, revista, jornal, balanço patrimonial ou tabela de classificação de riscos para distraí-los – e mantenham os olhos fixos na tela até que a emissora saia do ar. Posso assegurar que o que os senhores verão é uma terra devastada” (Retirado de: A Ascensão da mídia de Roger Parry. Elsevier, 2012).
O discurso de 53 anos atrás caracteriza com exatidão os dias atuais, a diferença é que esta “distração” nos dias de hoje pode se reverter em negócios lucrativos. Guy Finley, diretor executivo da 2nd Screen Society é enfático ao dizer que se um radiodifusor não pensa em Segunda Tela, ele está perdendo uma enorme fatia do mercado no futuro. “Quando lançamos a entidade era com o entendimento de que a mudança para a segunda tela era inevitável”.

Para Bittencourt a TV híbrida é o modelo que mais interessa ao
radiodifusor a ser estudado, pois permite o modo tradicional de
transmissão com as inovações do sistema broadband.

Este comportamento intrínseco ao ato de consumo televisivo vem gerando oportunidades de negócios. É um mercado que irá movimentar cerca de 8 bilhões de dólares em 2018 nos Estados Unidos. Mas é preciso diferenciar o uso da Segunda Tela no mercado norte-americano e brasileiro.
David Britto, coordenador do Módulo de Mercado do Fórum SBTVD (SET/ TQTVD), afirmou em uma conferência de imprensa no congresso da NAB que no Brasil existem alguns mantras que devem ser respeitados no que se refere ao uso da interatividade e conteúdo em Segunda Tela: a) Manutenção do modelo de negócios atual;
b) Manter a TV aberta relevante para a audiência;
c) Upgrade no sistema aberto para os padrões (HD-2K, UHD-4K, Super Hi-Vision-8K);
d) Manter o engajamento da audiência na primeira tela;
e) Enfrentar a concorrência com as novas mídias focando principalmente na nova geração.

Esses mantras direcionam as estratégias para sincronização do sistema broadcast e broadband. Mas, o sistema broadcast no Brasil ainda é o meio de maior relevância, desta forma as experiências em Segunda Tela e interatividade visam criar novas formas de negócios, mas dentro do modelo de negócios tradicional, onde a publicidade é a financiadora do sistema de produção e distribuição no sistema aberto. Aqui, ainda nos faltam pesquisas específicas que comprovem que as atividades de Segunda Tela estão efetivamente se revertendo em ganho nos números da audiência e, consequentemente, aumento no valor dos espaços publicitários.
Nos Estados Unidos, devido a grande penetração do sistema broadband, da popularização dos tabletes e smartphones, as experiências em Segunda Tela são direcionadas a aumentar o volume de espectadores para o sistema broadcast. Pesquisa apresentada pela 2nd Screen Society aponta que 63% dos consumidores que acessam o conteúdo sincronizado na segunda tela afirmam sentirem-se mais conectados com os programas que estão assistindo. Não por acaso os programas esportivos, games e eventos ao vivo são apontados como os melhores conteúdos para sincronização da primeira com a Segunda Tela.
Outra possibilidade de uso da Segunda Tela é no sistema de TV Híbrida. Nesta modalidade o sinal broadcast e enviado para os domicílios pelo ar juntamente com conteúdo enviado via sistema broadband. A interatividade pode se dar tanto na primeira tela quanto em dispositivos móveis. Fernando Bittencourt, diretor general de Engenharia da TV Globo, ressalta a diferença entre a TV Híbrida e a Segunda Tela baseada em aplicativos na internet: “TV Híbrida e Segunda Tela são duas coisas diferentes. Você poderá ter apenas TV Híbrida ou apenas Segunda Tela, ou ambas. Mas, são dois temas.
Na TV Híbrida o receptor recebe tanto o sinal linear, broadcast, quanto o conteúdo sob demanda, via banda larga”. Nas aplicações para Segunda Tela o conteúdo pode estar sincronizado ou não com a primeira tela e se restringirem aos dispositivos móveis.
Bittencourt ressalta que o modelo da TV Híbrida é o que mais interessa ao Broadcaster a ser estudado, pois permite “receber o sinal normal como sempre foi e complementar com alguma informação adicional via internet”. Este sistema é mais confiável e permite um maior controle do radiodifusor no conteúdo enviado.
Dois sistemas de TV Híbrida foram apresentados no congresso. O HbbTV, europeu e o Hybricast, da emissora pública japonesa NHK. Os dois sistemas trazem funcionalidades parecidas, tanto na primeira tela, como em tablets. Apresentam interação com o conteúdo, vídeo sob demanda e informações complementares dos programas exibidos, como no telejornalismo.

Qual é o nosso futuro?
Em uma concorrida sessão sobre o futuro do broadcasting, Bittencourt afirmou que “o mundo broadband está crescendo e as pessoas estão assistindo mais programas sob demanda. Mas, no mundo broadcasting, eu penso que o futuro são os programas ao vivo”. Bittencourt acredita que nos próximos 10 anos, os filmes e as telenovelas (no caso brasileiro) vão deixar de ser o primetime da televisão, mas por outro lado, as pessoas vão querer mais informação, mais notícias, mais esportes e mais conteúdo ao vivo..

David Britto, diretor de tecnologia da TOTVS, afirmou que no Brasil existem alguns mantras que devem ser respeitados no que se refere ao uso da interatividade e conteúdo em Segunda Tela.

Um desafio que se mostra no horizonte é quanto a nova geração que irá crescer em um ambiente onde a televisão divide com a internet e o conteúdo sob demanda a atenção dos espectadores. Contudo, este pode ser exatamente o motivo pelo qual a televisão não perderá sua relevância no futuro mesmo concorrendo com o mundo broadband.
Para Roberto Franco, diretor de Rede e Assuntos Regulatórios do SBT e presidente do Fórum SBTVD, a televisão aberta será também relevante para novas gerações, pois, “a sociedade precisa de alguma mídia que transmita tudo aquilo que seja o elo de ligação da sociedade, o repertório comum, a pauta do dia-a-dia, ou seja, uma mídia que seja capaz de reunir as pessoas em volta de determinados temas e a televisão tem excelência neste propósito. A necessidade de se enviar grande quantidade de informação simultaneamente para milhões, sempre existirá e sempre será relevante”.
Este, talvez seja o melhor exemplo a ser seguido pela radiodifusão no Brasil. Tornar a televisão uma prestação de serviço acima de tudo. Gordon Smith, CEO da NAB em seu discurso de abertura do congresso foi preciso em demonstrar em quais pontos o broadcast se difere do broadband. Reconhece as grandes oportunidades de negócios que a integração dos dois sistemas permite, mas broadcast e broadband não são a mesma coisa e, para Smith, a principal diferença entre eles é a motivação das duas indústrias. “Broadcasting são radiodifusores – homem e mulher exclusivamente ligados às pessoas que servem – homens e mulheres que estão comprometidos não só com a inovação, mas em servir ao público”.
Smith acredita que o momento atual permite para a TV local a recuperação dos investimentos em publicidade perdidos para a TV paga e para a recessão da economia. Aliás, uma questão importante que interessa também ao Brasil é o fato das emissoras locais e as operadoras de TV paga dos Estados Unidos estarem firmando contratos para carregamento dos sinais abertos.
Situação que ainda gera bastante discussão por aqui.
O que devemos nos perguntar é: o que realmente significaria para a sociedade, se a TV aberta deixasse de existir? Qual ou quais seriam os reais impactos? Não podemos acreditar que substituição do sistema aberto de televisão pelo sistema broadband é um caminho natural oferecido pelas inovações tecnológicas. O sistema aberto de televisão é essencial para a Democracia. Ele e aberto e gratuito. Como bem disse Gordon Smith ao final de seu discurso: “Broadcasting sempre será a voz da liberdade e da democracia. Isto é algo precioso. É algo que vale a pena defender. É algo que vale a pena vencer”.

*Prof. Dr. Francisco Machado Filho é docente do curso de Jornalismo da UNESP FAAC/Bauru-SP