DTV PLAY/TV 2.5: Nuances, hibridizações e tendências do Sistema Brasileiro de Televisão Digital – Segunda Parte

SET EXPO – “O OLHAR DOS ESPECIALISTAS DA SET”

Este texto é a continuidade da reportagem publicada na edição 187 da Revista da SET, na qual a jornalista, professora e cocoordenadora do Obted, analisa o estado de arte do SBTVD-T e as funcionalidades que, logo em breve, poderá oferecer ao telespectador

por Deisy Fernanda Feitosa

Na primeira parte desta reportagem, realizada durante o último SET EXPO, descreveram-se em detalhes os saltos tecnológicos trazidos pelo DTV Play, o novo framework do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), que estará nos lares brasileiros a partir de 2020. Entende-se, com as explanações trazidas, que é uma inovação incremental, ao passo que especialistas defendem que ainda estamos a caminho de uma TV disruptiva. Explicaram-se algumas das novas funcionalidades do Perfil D do Ginga, como comutação 4K, propaganda direcionada e áudio imersivo. Para abordar a temática, contou-se com os depoimentos de quatro profissionais que acompanham in loco as discussões e definições técnicas do SBTVD-T, e que também contribuíram com os debates do SET EXPO 2019: Roberto Franco, diretor de Rede e Assuntos Regulatórios e Institucionais do SBT; Paulo Henrique Castro, diretor de Tecnologia de Transmissão e P&D da Globo; Rafael Diniz, colaborador do laboratório alemão de pesquisa Fraunhofer IIS e doutorando em Informática da Universidade de Brasília (UNB); e Marina Ivanov, doutoranda em Computação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Para dar continuidade ao artigo, o debate, agora, se concentrará em questões relativas a consumo, métricas, interatividade e IoT (Internet das Coisas).

Com a chegada dos smartphones e tablets ficou mais interessante ter os extras na segunda tela do que na tela da TV, afirma Paulo Henrique Castro, da Globo

Fórum SBTVD aposta no novo framework do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T)

Modelo de negócios: a televisão, o consumo, o consumidor
Néstor Garcia Canclini (1995), no livro Consumidores e Cidadãos, mesmo numa esfera analógica, já olhava para o “consumo” como “o conjunto de processos socioculturais” capazes de ir além do campo da futilidade e se transformar num ato social, num exercício de cidadania. No livro, ele lança a seguinte reflexão: “[Devemos nos questionar se]… ao consumir não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos. Se a resposta for sim, será necessário aceitar que o espaço público agora transborda o campo de interações políticas clássicas.” (CANCLINI, 1995, p. 27)1.
Por sua vez, Henry Jenkins, para explicar o fenômeno designado por ele, que deu nome ao livro Cultura da Convergência (2006), entende que, ao contrário do que muitos pensam, a convergência é, antes de qualquer coisa, um processo humano que acontece não por meio dos aparelhos, mas: “[…] dentro dos cérebros de consumidores individuais e em  suas interações sociais com os outros.”
Ele defende a teoria de que a convergência tornou o consumo uma atividade coletiva, a partir do momento em que permitiu ao consumidor ser abordado por diferentes suportes midiáticos, em rede. Isso fez com que o consumidor, segundo ele, passasse a desempenhar um papel determinante na circulação de conteúdos e se transformasse num curador digital. Dessa forma, o pesquisador ressalta que a convergência age sobre as duas forças motrizes da comunicação: “A convergência envolve transformação tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de comunicação.” (JENKINS, 2006, p. 42)2.
Indo na mesma direção, Alberto Marinelli, no artigo La televisione dopo la televisione (2012)3, defende que é chegada a hora de desenvolvedores e produtores de televisão, seguindo o exemplo do players da internet, considerarem as práticas de consumo em rede e a cultura participativa em seu cotidiano; começarem a absorver os novos hábitos para que consigam garantir e, até, conquistar o seu espaço dentro da cultura digital. “A televisão, que está se hibridando com tecnologias de rede, deverá ser capaz de dialogar de forma contínua e profunda com esses públicos e demonstrar que é capaz de renunciar à ‘verticalidade’ e à tendência ‘prescritiva’, inerente à estrutura clássica do meio.” (MARINELLI, 2012, p. 12, tradução nossa). O que significa que certos elementos narrativos que compõem a “estrutura clássica” da TV devem sofrer uma atualização, não apenas a partir das incrementações que permitiram uma reprodução em grande escala dos seus conteúdos e canais e da ampliação de dispositivos de recepção do seu sinal, mas principalmente pelo posicionamento dos seus consumidores, que, ao se tornarem membros da cultura digital, passam a ter novas demandas e hábitos de consumo. E tudo isso interfere inevitavelmente na produção de TV.
As intervenções de Roberto Franco, no painel que mediou no Congresso SET EXPO 2019, denominado “Futuro da Mídia: Tecnologia e Hábitos de Consumo”, bem como as discussões trazidas durante a entrevista foram nesse sentido. Franco, que também é conselheiro da SET, do Fórum do SBTVD (Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre) e da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), deixou claro que o foco deve estar no consumidor, que é quem precisa, de fato, pautar os processos produtivos da televisão.
Perguntou-se a Franco o que significa a TV Digital nos dias de hoje, se olharmos para dez anos atrás, quando o Brasil ainda estava dando os primeiros passos rumo à digitalização da TV. E a resposta do executivo foi direta: “Eu me recuso a falar em televisão, TV Digital, falo em comunicação eletrônica de massa, porque o que fazemos é informar e entreter as pessoas através do meio eletrônico. A televisão é uma das formas de manifestar o que fazemos, mas o que nós sabemos fazer é comunicação, conhecemos os gostos, temos a linguagem e estabelecemos uma comunicação com engajamento”, defendeu. Para o executivo, o engajamento não é gerado pela internet, mas por meio da emoção, e as mídias eletrônicas audiovisuais, acredita, têm muito mais poder de engajamento. “Temos uma alta capacidade de intervenção e de informação. Para mim, o que nós atendemos de uma demanda humana, e de tantas que existem e que permanecem as mesmas na vida, é informar e entreter. Então, somos especialistas em fazer conteúdos para a plataforma televisiva, e a TV Digital apenas trouxe ricas ferramentas para que possamos fazer isso ainda melhor. Nós tínhamos o domínio da tecnologia de comunicação para o fazer, mas as ferramentas da época não nos permitiam oferecer um maior encantamento e imersão pela alta definição, ou a capacidade de ver televisão fora de casa e ter acesso à interatividade”, ressaltou. Ele reconheceu que as novas ferramentas estão prometendo um caminho ainda de maior intensidade e de relacionamento com o telespectador. Por isso, entende que mais do que nunca é preciso lançar o foco no consumidor, entender demandas, desejos e anseios, para só então “enxergar” o que se pode fazer com as ferramentas disponíveis.
Franco destacou que o desafio grande e contínuo é compreender por que o telespectador consome os seus conteúdos, e não como ele os consome. “Todo o meu esforço é para entender o que é a minha oferta real de valor, como eu sou percebido, e encontrar as ferramentas certas. O que a gente vê claramente nas demandas declaradas é que ele continua querendo se divertir, se transportar para outras realidades, se encantar, imergir no novo mundo”, contou. “Então, tudo o que oferece uma imagem de maior resolução, mais imersiva, mais encantadora, mais realista, ainda tem um caminho de evolução muito grande, e não só a ferramenta, mas a capacidade de você roteirizar, criar storytellings usando a exploração desse senso de realismo”.

Na TV 2.5 as múltiplas telas são essenciais não só na distribuição de conteúdo, mas também na produção

Liberdade de Consumo
Conforme Roberto Franco, as pessoas mostram claramente que buscam mais liberdade e controle no ato de consumir. “Eu quero ver algo relaxadamente, quero ver interativamente, quero ver algo em casa, na rua, em série, junto com os amigos… Então, quando, como, onde, sobre o que eu quero mais controle? Eu quero poder ter conteúdos que me falem, que me toquem, que me envolvam muito mais com quem eu sou do que ter que me adaptar a uma oferta coletiva”, defendeu o executivo do SBT.
Por isso, Franco traz a relevância de conteúdo e o conhecimento profundo da jornada do consumidor como aspectos essenciais. “Que o consumidor possa participar não só dando feedbacks mais dinâmicos, como também, até, influenciando naquilo que está sendo construído”, observou. “Mas o significado do conteúdo relevante não é dar uma oferta daquilo que você acha que é legal e deixar que as pessoas escolham, mas entender o que as pessoas, de fato, querem, precisam, e entregar a elas da maneira mais clara possível”, ressaltou, e acrescentou que, com a oferta de conteúdo que se tem hoje, não há mais espaço para que as pessoas continuem a “minerar” para encontrar algo.
O executivo acredita que maior qualidade, portabilidade e interatividade são demandas práticas: “Conteúdo relevante, capacidade de interação e controle. É isso que o consumidor quer, e é nisso que nós temos que buscar atendê-lo, não só com ferramentas tecnológicas, mas com o domínio da Teoria da Comunicação, para termos um diálogo e uma linguagem mais efetivos e para estabelecermos um contato, uma experiência mais intensa com o consumidor”, apontou. Para Franco, não teria sentido a mais moderna tecnologia de televisão se fatores humanos e de aproximação com o consumidor não fossem considerados. Por isso, defende tudo isso como a chave para que se trace o caminho rumo à TV disruptiva: “Vamos parar de falar de hightech, vamos falar de hightouch, um auto-toque, uma auto-entrega, vamos falar de uma experiência realmente gratificante para o consumidor, de um lugar onde ele sai satisfeito, alegre querendo voltar”, sublinhou.

Para o professor Almir Almas (USP), a televisão é parte de um universo que denomina “semiosfera televisiva”

Métricas
Considerando a hibridização trazida pelo DTV Play e as formas individualizadas de ver televisão que emergem, a reportagem queria ouvir de Roberto Franco quais as tendências de medição de audiência na TV aberta terrestre. Para o executivo, serão necessárias novas métricas, pois saímos de um modelo estável, o que chama de “sólido”, para formas mais “líquidas” de se consumir, parafraseando o conceito de Zygmunt Bauman. “Nenhuma nova métrica proposta até agora mostrou relevância ou assertividade. E é muito simples entender: nós vivíamos em um mundo sólido, no qual tudo tinha uma estrutura organizacional de oferta, de preço, regulatória, tributária. Se algo mudasse esse sólido de posição, era muito fácil arrumar. O mundo veloz em que vivemos passou a ser líquido, está em mutação o tempo todo, e você não o rearruma. As métricas que medem mídia hoje são muito assertivas e precisas. Já neste mundo líquido, as métricas são muito proprietárias. E nenhuma delas comprova o que se mediu com o resultado obtido de forma repetitiva. Como este mundo está numa mutação tão intensa, é difícil entender como se medir. Métrica é um padrão. Padrão é feito para você medir coisas estáveis. Se a coisa está mutante, não tem padrão. Se não tem padrão, como você tem referência de métrica? Se você não consegue padronizar, como é que você consegue metrificar? Então, as métricas do passado não são mais suficientes para tratar tudo, mas as métricas novas sequer conseguiram estabilidade. Então, o desafio é muito grande”, analisou o executivo no SET EXPO.
Uma plataforma pode ter a medição de todos os aparelhos, mas se esses aparelhos não tiverem uma representação estatística ela só servirá para representar aquela determinada amostra, advertiu Franco. Para ele, isso não traz precisão. “Você não consegue inferir, porque essa amostra não reproduz o universo. Já uma amostra bem selecionada é a grande dificuldade. Com a TV conectada, a emissora sabe exatamente o que estou vendo. Então, tem-se um conhecimento muito grande sobre uma pessoa, mas não sobre o todo. Por isso, essas duas ferramentas vão ter que andar juntas, uma complementando a outra, por muito tempo”, ponderou.
Roberto Franco deixou claro que o momento é propício para se aprender e que, para isso, é preciso estar aberto às mudanças que não param de acontecer. “No SBT a gente tem um lema: o mundo hoje é de quem aprende muito rápido, desaprende mais rápido ainda e aprende novamente. As pessoas que ficam presas ao que sabiam, não conseguem mais andar na velocidade do mundo. É assim que é a realidade hoje. Eu falo com o telespectador em uma semana, em um programa. Quando eu falo com ele na outra semana, o mundo já é outro. Ou seja, se eu achar que o que me deu audiência em uma semana vai me dar audiência na semana que vem, eu posso estar errando. Então, todo o nosso pensamento estratégico, a nossa oferta de produto, todo o nosso discurso com o nosso cliente, com o telespectador, tem que ser mutante. E ele não vai ser mutante se eu acreditar que eu sei tudo. O maior conhecimento que eu tenho que ter hoje é de desaprender e de reaprender”, finalizou.

Modelo de negócios: Como sobreviver  nesse novo ecossistema?
Para o executivo da Globo, Paulo Henrique Castro, chegou a hora de pararmos para rever o conceito de televisão a despeito de teorias apocalípticas sobre o fim desse veículo. “Muita gente fica vaticinando ao longo de décadas: a ‘TV morreu, acabou’. Mas o que é TV? Precisamos, antes de tudo, definir o que é TV. Se a gente considerar que TV é você assistir remotamente, ‘tele’ ‘visão’, considerando a origem da palavra, é você estar vendo uma coisa remotamente, a distância. Não importa se é uma TV por broadcast, se é uma TV aberta por UHF, se é por satélite, cabo, internet, a TV, do ponto de vista do usuário, é a experiência de você assistir entretenimento, de você assistir informação”, comentou.
Para Castro, a maneira de como se transportar o sinal para a casa do usuário é algo a ser pensando pelas áreas de tecnologia dos provedores de conteúdo, e não diz respeito ao usuário, considerando que o único desejo do usuário é ligar o aparelho de televisão e ver o conteúdo que escolher. Ele afirmou que, com o advento da internet e das plataformas OTT (Over-the-top), a internet é usada como camada de transporte para conteúdos televisivos, e aplicativos passam a “garimpar” conteúdos concatenados que podem ser escolhidos na hora em que as pessoas querem vê-los. E muitas pessoas consideram esses conteúdos destacados do conceito televisão, com o que Castro não concordou: “Começou-se a criar uma dicotomia de que um não pode existir perante o outro, e eu discordo profundamente”.
Cabe aqui citar o professor Almir Almas, chefe do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da USP e cocoordenador do Observatório Brasileiro de Televisão Digital e Convergência Tecnológica (Obted), que também defende essa hipótese. Durante um painel de que participou no Congresso SET EXPO 2019, intitulado “Realidade Virtual, Realidade Aumentada, Vídeo 360 graus”, o professor disse considerar a televisão como parte de um universo do que chama de “semiosfera televisiva”, em que conteúdos de mídia televisiva se constituem em novas configurações, mas a linguagem que os permeia é sempre aquela oriunda da televisão. Almas falou disso, também, no SET EXPO 2018, e vem difundindo esse conceito em diversos artigos e palestras.
Para o diretor de Tecnologia de Transmissão e de P&D da Globo, Paulo Henrique Castro, quando se tem flexibilidade, é possível se adaptar a qualquer mercado, e o padrão definido, por ser flexível, principalmente no tocante à propaganda direcionada, navega a favor do radiodifusor, ao oferecer novas possibilidades de se fazer negócio, embora o nível de lucratividade dependa da demanda do mercado e da economia do País. “O padrão atualizado nos permite, mesmo sem saber qual é o futuro e a demanda do mercado, desenhar alguma coisa que atenda àquela demanda, que se sobreponha às dificuldades, e se aparecer uma coisa que ninguém pensou, podemos desenvolver em cima dessa plataforma”, comemorou.
Por sua vez, o diretor de Rede e Assuntos Regulatórios e Institucionais do SBT, Roberto Franco, disse que o perfil da emissora onde trabalha favorece o contexto que ora emerge: “Nós somos produtores e distribuidores de conteúdo, fazemos isso com excelência, temos produtos relevantes e a capacidade de sermos agregadores de conteúdo, de negócios. Então, tudo o que a gente sente de demanda, a gente procura explorar”, destacou e frisou que o SBT está em todas as plataformas, que é o canal de maior visibilidade do YouTube, mundialmente, e que já tem histórico de grande engajamento em conteúdos digitais. Segundo ele, todas as funcionalidades do DTV Play serão exploradas e já estão sendo pensadas, e o único foco da emissora sempre será o telespectador: “Estamos olhando OTT, marketplace de OTT, hub de negócios. Tudo isso está em nosso plano estratégico para ser desenvolvido. Mas quem define a nossa oferta é o telespectador e a minha capacidade financeira e de conhecimento. Esse é o segredo que a gente está buscando: o que o consumidor percebe de valor e a gente ainda não entendeu”, explicou. O que, para Franco, pode não depender de uma tecnologia específica, mas simplesmente do tom que se usa, de uma palavra diferente: “Quando o SBT identificou que a gente é a TV mais querida do Brasil, que era a única emissora que tem os ‘sbtistas’, que tinha a recomendação do consumidor para qualquer pessoa, sem filtro, o que falamos? ‘TV SBT, a TV com a maior torcida do Brasil.’ Ou seja, dissemos ‘obrigada’. E essa palavra nos rendeu um crescimento na plataforma digital absurdo. E qual foi a inovação? Qual foi a tecnologia? Nenhuma. Só entender o seguinte: o telespectador se relacionava conosco de uma maneira diferente, e aquilo tinha valor”, sublinhou.

Interatividade
Ao que tudo indica, retoma-se o projeto de interatividade pensado nos primeiros anos de desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, mas tudo isso vem com uma nova roupagem. A popularização cada vez maior das TVs conectadas e o canal de retorno possibilitado por elas, que passou a ser experimentado, já com a segunda tela, de forma mais efusiva, nos últimos cinco anos.
Rafael Diniz, com quem a reportagem conversou na primeira parte desta reportagem, há anos, acompanha o desenvolvimento da TV Digital no Brasil, tendo, inclusive, dedicado o seu mestrado a adaptar o middleware Ginga para o rádio digital (pensou contextos, usos e adaptações). Atualmente, pesquisa holografia e vídeo volumétrico no doutorado que realiza na UNB (Universidade Nacional de Brasília). Ele disse estar esperançoso com as possibilidades trazidas pelo Perfil D do Ginga ao DTV Play, e comemorou o fato de as emissoras avançarem em relação ao modelo de negócios da TV Digital interativa. “Há três anos, parecia que o Ginga estava morrendo, tinha-se pouca clareza sobre o que iria acontecer com a interatividade da TV brasileira. Em minha opinião, os radiodifusores, finalmente, viram valor através do mundo conectado da TV híbrida. Eles viram que se não puderem ter uma aplicação interativa que possa buscar conteúdo da internet, enviar conteúdo para o radiodifusor, sobre o que as pessoas estão assistindo, ou dar uma experiência ampliada da TV, a TV iria ficar para trás”, espera.
Ele, que foi orientado no mestrado pelo professor Luís Fernando Soares – que faleceu em 2015, pesquisador responsável por desenvolver a linguagem NCL e o o Ginga, middleware brasileiro, lembrou que ele falava de TV híbrida (Integrated Broadcast Broadband) desde
o começo, e se referia ao Ginga como o primeiro que suportaria a televisão híbrida. “O Ginga, lá em 2007, foi algo à frente do tempo. Eu acho que é assim que a gente pode entender. Foi algo tão avançado, tão novo, que não foi compreendido, e que está sendo compreendido mais de dez anos depois”, reflete. Ele diz que
o Ginga, desde a primeira revisão, permitiu o uso de redes IP (Internet Protocol) e que a linguagem Lua sempre teve API para trabalhar com IP, ou seja, a mídia NCL sempre pôde ter uma URL que pudesse buscar um conteúdo via IP. “A possibilidade de ter uma interatividade pela internet sempre existiu, na época era à frente do seu tempo, pois as TVs não eram conectadas à internet, mas hoje são, e o Ginga sempre suportou isso”, afirmou.
Para o pesquisador, vale a pena pontuar que o HTML agora também é suportado pelo DTV Play. Ou seja, o Ginga tem hoje os subsistemas NCL e HTML. O Java, por sua vez, foi retirado. E, apesar de o HTML ter sido incluído, explicou, os recursos específicos da TV, como pegar um dado específico do transport stream (fluxo de transporte) ou, eventualmente, trocar de canal, ressintonizar um áudio, continua sendo acessível somente pelo subsistema Ginga NCL. Sobre o porquê de o Java ter sido retirado do SBTVD-T, Rafael Diniz explicou: “O Java foi retirado por vários motivos, até mesmo pela questão dos royalties (inclusive, foi tirado dos conversores distribuídos pelo governo durante o switch-off da TV analógica). Além disso, quando a Sun Microsystems foi comprada pela Oracle, eles abandonaram a gente da TV Digital. Então, não havia nenhum motivo de manter o Java, pelo contrário, todos sempre viam o Java como um peso morto. Então, foi embora por bem. Enquanto isso, o NCL é uma tecnologia nacional, as linguagens obrigatórias do middleware Ginga são o NCL e o Lua, com adição de você poder ter mídia HTML, que é uma demanda quase que universal dos desenvolvedores”.

Rafael Diniz, colaborador do laboratório alemão de pesquisa Fraunhofer IIS e doutorando em Informática da Universidade de Brasília (UNB), afirmou que “a TV conectada é uma realidade, e não dá para negar isso”

Canal de retorno: Internet
Por muitos anos, cogitou-se a possibilidade de se fazer interatividade por meio da transmissão pelo ar, que muitas vezes foi algo questionado em sua viabilidade, embora muitos testes tenham sido feitos a esse respeito. Rafael Diniz, no entanto, considerando o contexto contemporâneo admitiu que se referir a uma televisão isolada da internet é algo cada vez mais distante, uma vez que existe uma tendência de que todos os novos equipamentos de TV tenham conexão de rede. Segundo ele, o que considerávamos “canal de retorno” mudou de nomenclatura para “internet”: “A TV está conectada a qual rede? À rede IP, internet. Então, a TV conectada hoje é uma realidade, e não dá para negar isso. Todo aquele contexto que vivemos há mais de dez anos de falar que dá para fazer tudo pelo broadcast, continua dando. Você pode ter muitos recursos de interatividade em que o canal de transmissão é só o broadcast, mas quando você adiciona a internet no mix, levando a televisão híbrida ao broadcast e ao broadband integrado, novas possibilidades se abrem, é inegável”, considerou.
Por sua vez, o engenheiro Paulo Henrique Castro observou que as ferramentas que o Ginga oferecia em sua primeira geração sofriam a resistência dos próprios criadores, porque não lhes permitiam executar serviços que consideravam interessantes. “Com o advento dos smartphones, do tablet, ficou muito mais interessante ter os extras na segunda tela do que na tela da TV. Então, era uma solução que não estava solucionando problema nenhum. A gente repensou, compreendeu as limitações e desenvolveu um sistema um pouquinho mais completo baseado no sistema original, e isso expandiu muitas possibilidades”, justificou.
Depois disso, contou Castro que foi possível sensibilizar aos criadores de conteúdo a explorar tais funcionalidades, e muitas possibilidades agora se abrem: “Agora pode, até, vender pela televisão. As TVs, antigamente, não eram conectadas. Quando o Ginga nas ceu, como é que eu iria comprar uma coisa? Não havia um canal de retorno implementado,” esclareceu. “Com a chegada das Smart TVs, que permitem a conectividade com a internet, precisamos dar uma melhorada no Ginga, inserir algumas funcionalidades, para explorar esse canal. E aí, sim, abre-se uma janela enorme de oportunidades.”
E, tal como Rafael Diniz, ele acredita que o híbrido soluciona todos esses impasses, à medida que se usa o melhor de cada rede para se oferecer uma melhor experiência ao usuário. “E sem largar o nosso modelo, que é um sucesso. A gente só está colocando coisas a mais, a gente está só colocando coisas boas”, comemorou.

O que vem pela frente
Parece que sentir o cheiro do Master Chef é uma possibilidade cada vez mais real. O desejo de poder sentir na TV Digital os cheiros exalados pelas receitas do programa da Band foi colocado por um estudante de escola pública que participou de uma pesquisa encabeçada pelo professor Cláudio Márcio Magalhães, publicada no livro TV Digital e Educação Básica: A televisão como meio pedagógico. A escola como meio de comunicação. (OLIVEIRA; SOUSA; FEITOSA, 2019)4.
Marina Ivanov, de quem foram utilizados alguns depoimentos na Primeira Parte desta matéria (publicada na edição 187), é integrante do MídiaCom (UFF), laboratório que reúne pesquisadores das áreas de Computação e Engenharia de Telecomunicações, dedicados a pesquisar redes e sistemas multimídia. Ela desenvolve uma pesquisa de doutorado sob a orientação da professora Débora Saad e atua em uma área dedicada a sistemas multimídia, para aumentar a qualidade de experiência do usuário a respeito dos conteúdos a que assiste. Assim, estuda a forma como conteúdos de diferentes mídias (vídeo, áudio e texto) podem ser apresentados de forma sincronizada.
A pesquisa de doutorado que ela desenvolve estuda como gerenciar essa sincronização, garantir que uma aplicação que foi criada na fase autoria, pelo autor, seja executada de forma correta no receptor, sem ter falha de sincronização ou qualquer erro. “Por exemplo, quero vender a roupa da personagem da novela no momento em que aparece vestindo-a. Então, naquele momento em que aparecer a roupa, tem que aparecer o ícone dando a informação de compra. Se esse ícone aparecer antes ou depois, vai perder todo o sentido da minha aplicação”, explicou e reforçou que, se o conteúdo tiver diferentes mídias ou efeitos, precisa estar sincronizado. Dessa forma, é preciso algum componente no receptor de TV para controlar isso e garantir que tudo seja exibido sem atrasos. “O autor cria uma aplicação para o programa e ele quer que seja exibida corretamente. Se não tiver esse controle, ou seja, um evento de preparação, pode ocorrer atraso ou simplesmente não aparecer na hora certa. Por exemplo, uma propaganda direcionada poderia demorar para ser buscada da internet, e só iria aparecer na metade da exibição do comercial”, elucidou.
A questão da sincronização de objetos de mídia com efeitos sensoriais é uma questão que tem sido tratada pela pesquisa de Marina Ivanov. “Tem diferentes estudos que constataram que se colocamos mais efeitos, tornamos a sensação mais imersiva para o usuário e, consequentemente, vai atraí-lo mais. Por isso, temos estudado como adicionar efeitos sensoriais e controlar diferentes dispositivos que estarão envolvidos na experiência de ver TV. Um efeito de cheiro, por exemplo. Se na hora que estiver passando um campo de flores, quero que seja liberado um aroma de flor para o usuário, isso precisa estar sincronizado, o efeito com o conteúdo”, ilustrou.
Ela explicou que, para ter acesso a essas funcionalidades, o usuário precisará comprar os equipamentos específicos, assim como hoje é preciso comprar um sistema de som surround para se ter acesso a uma experiência de áudio imersivo, por exemplo. “Tem um dispersor de aromas chamado Moodo. Você compra cápsulas, como aquelas de café, mas com os aromas que você quer. Temos estudado muito isso com ênfase na área da Saúde: podemos ter, por exemplo, uma sala de terapia multissensorial e, durante a exibição de um vídeo para o seu paciente, liberar diferentes tipos de efeitos para tornar a experiência mais imersiva”, contou.
De acordo com a pesquisadora, existe uma padronização chamada MPEG-TS que faz a modelagem de comunicação entre o mundo virtual e o mundo real. “Ela já tem um padrão para quando você representar um efeito na sua aplicação e para quando você fizer a comunicação da aplicação que está passando na TV com os dispositivos que você tem em seu ambiente de vídeo”, explicou.
Os dispositivos atuadores e sensores, por sua vez, ampliam a possibilidade de interação para além do botão do controle remoto, por permitirem o comando por voz (há um televisor da Sony com a função), por gestos (Leap Motion) e pelos olhos (Eye Tracking). Marina Ivanov disse que o seu grupo de pesquisa tem tentado experimentar essas funcionalidades, geralmente mais aplicadas em jogos, para a área da Saúde e para a televisão. Entretanto, observa que também já são testadas para a Educação, como ensino a distância, através de simulação com a realidade virtual.
Se olharmos para tudo o que foi dito até daqui, percebemos que estamos a caminho de tendências cada vez mais imersivas, participativas, interativas, humanizadas, sinestésicas… Há um universo a ser desbravado. Nesse sentido, podemos dizer que o “futuro, de fato, já começou”. E dentro “desse futuro”, no seio desse emaranhado tecnológico pautado pela convergência digital, a televisão parece, mais do que nunca, ocupar um lugar de protagonismo, quer seja como plataforma de distribuição, dispositivo tecnológico, meio, conteúdo ou linguagem. Nesse sentido, a minha pergunta agora é para você: Você acha mesmo que a TV está morrendo?


1 CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
2 JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2006.
3 MARINELLI, Alberto. La televisione dopo la televisione. In: MARINELLI, Alberto; GIANDOMENICO, Celata. Connecting Television: La televisione al tempo di Internet. Milano: Angelo Guerini e Associati Ed., 2012. 303 p.
4 MAGALHÃES et al. Sem Bombril nem chuvismo, mas com “cheiro” de Master Chef: a migração para a TV Digital a partir do olhar de crianças e professor dos anos iniciais”. In: OLIVEIRA, Heli Sabino de; SOUSA, Cirlene Cristina de; FEITOSA, Deisy Fernanda. TV Digital e Educação Básica: A televisão como meio pedagógico. A escola como meio de comunicação. 1.ed. – Brasília: Universidade Católica de Brasília, 2019. 240 p., 21 cm.


 

Deisy Fernanda Feitosa, é jornalista, professora do curso de Audiovisual do Centro Universitário Senac Santo Amaro, cocoordenadora do Observatório Brasileiro de Televisão Digital e Convergência Tecnológica – CTR/ECA/USP e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades – Núcleo Diversitas (FFLCH-USP).
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